2025

ACONTECEU EM MACAU…

... hũa pataca para as despezas da escola...

Imagem gerada pela IA (Gemini).

São raros os momentos em que os bens mais preciosos são oferecidos, principalmente a quem deles mais necessita. Por entre todas as riquezas que mais ambicionamos talvez encontremos a arte de ler e escrever.

Consta que, no início do século XIX, o Colégio de S. José, em Macau, tinha falta de mestres, estando assim impedido de cumprir uma das suas mais nobres missões. Ao mesmo tempo, na mesma época, do outro lado do mundo, alguém criava um novo método de ensino, sem professores, e a pensar em todas as crianças que poucos meios possuíam para além dos que garantiam a sua mínima subsistência, fazendo da escola uma miragem. Joseph Lancaster, na longínqua Bretanha, lançava as sementes de um novo método de ensino que germinava em diferentes terras espalhadas pelo mundo, incluindo a pequena península de Macau.

O Colégio de S. José fez publicar um breve aviso nas últimas linhas, da última página, do jornal de 30 de maio de 1823. Era quase uma breve nota de rodapé que A Abelha da China transportava pela Cidade, um jornal que poucos saberiam ler e muitos, quando o miravam, apenas vislumbravam linhas indecifráveis e colunas que se confundiam com manchas negras sem significado. Eram as últimas linhas de um conjunto de notícias sobre Macau, dirigidas aos que, também no último degrau, aguardavam a oportunidade, quiçá única, de serem os primeiros.

Com este aviso, o Colégio anunciava mais uma tentativa para cumprir a sua missão de ensinar e Joseph Lancaster oferecia o caminho que haveria de ser seguido. No dia 2 de junho, daquele ano de 1823, Macau iria conhecer uma segunda-feira diferente, por certo mais iluminada. Avisavam-se os habitantes da Cidade que iria abrir uma Escola Publica de primeiras letras, recorrendo ao methodo de Ensino Mutuo: um professor ensinava um conjunto de alunos que, por sua vez, levavam a lição a outros alunos, dando origem a uma aprendizagem em cadeia, que procurava chegar a um número, sempre crescente, de crianças.

A escola era aberta a todos os meninos da Cidade, e sem nada contribuir para o Professor, porque o Governo disso se encarregaria. Excecionalmente, cada aluno apenas tinha de contribuir com uma simples pataca no início de cada trimestre, a começar no mês de julho, para suportar as despesas como cartas, papel, &a.. Mas, porque esta simples pataca significava riqueza para muitos, esta exceção tinha, também ela, uma outra exceção: Dos meninos pobres nada se exigirá.

Seguindo os ventos que sopravam do ocidente, aportava a Macau o ensino das primeiras letras, que iria agora chegar a todas as crianças da Cidade. Era o momento que lhes iria oferecer a possibilidade de lerem a sua terra, interpretarem a sua vida e escreverem a sua página no livro do mundo, daquele mundo que as aguardava num futuro próximo.

In Fundação Jorge Álvares, Newsletter, maio. 2025

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... com palavras, e tormentos inquiridos...

Imagem gerada pela IA (Gemini).

No ano de 1800, na já velha cidade de Macau, o início de um novo século não anunciou o fim de atos que pusessem em causa a vida e a propriedade alheias.

A-hae e A-Chien planearam um assalto, tendo por vítima um sobrecarga holandês, reuniram os cúmplices e organizaram a fuga para sair da Taipa, a bordo de uma lorcha. Apanhados pelas autoridades de Macau no enredo de um crime, os dois chineses foram enviados ao Mandarim da Casa Branca, tal como ditava a tradição do exercício de uma justiça que não era cega e dependia das origens dos acusados. Por seu lado, os mandarins aplicavam a justiça em nome do celestial Filho do Céu, juntando ao papel de juiz o de acusador e, porque não dizê-lo, o de carrasco.

Atrevemo-nos a dizer que a busca da verdade sempre foi um desígnio humano, em todos os tempos e em todas as geografias. Em Xiangshan, decorria o mês de abril, o Mandarim da Casa Branca, à falta de melhores provas, procurou a verdade nos próprios acusados, tentando obter uma confissão. Para que tal acontecesse, pôs a tormentos os ditos dois criminozos. Não uma, mas muitas vezes, foram os dois chineses com palavras, e tormentos inquiridos, sem nunca reconhecerem a sua culpa naquele caso, mas admitindo terem já motivado alguns disturbios e feito varias desordens em Macao. Para o Mandarim ficou claro que eles estavam inteiramente inocentes, pois em bom rigor, segundo o rezultado da devassa, estejão sem culpa.

Deste modo, ou talvez não, impunha-se a aplicação do devido castigo: o Mandarim da Casa Branca determinou que A-hae e A-Chien seriam postos em Canga, em Macau, pelo prazo de dois meses, após o que deveriam ser desterrados para as suas vilas de origem, onde o Mandarim local, devidamente informado dos seus crimes, aplicaria um novo castigo. Finalmente, os dois chineses ficavam proibidos de regressar a Macau.

Inocentes do que eram acusados, os dois chineses foram considerados culpados do que confessaram, embora não tenham sido disso incriminados. Sem dúvida, esta era uma situação em que o crime não podia ficar impune. O primeiro castigo, porventura prevenindo qualquer culpabilidade que pudesse ficar por esclarecer, começou a ser aplicado nas palavras e tormentos a que foram sujeitos, enquanto se procurava determinar a verdade pela via da confissão. Não tendo esta ocorrido, estava provada a sua inocência no caso do assalto ao sobrecarga holandês, mas a liberdade não deixou de ser uma miragem. De facto, confirmava-se serem homens que desencadearam muitas perturbaçoens, o que deu origem ao segundo castigo, o de serem colocados em Canga… e ao terceiro castigo, a ser aplicado nas suas vilas de origem, onde deveriam ser sopeados… e ao quarto castigo, que determinava jamais voltar ao destricto de Macao.

A história de um crime em Macau, com quatro castigos em terras de mandarins.

In Fundação Jorge Álvares, Newsletter, abril. 2025

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... que todos os Chinas, e Christãos se conservem em paz...

Imagem gerada pela IA (Gemini).

Nos idos de março do ano de 1788, um novo Edital chegou a Macau, expedido pelo mandarim da Casa Branca, Wang Chaojun. Uma nova exigência se abatia sobre a cidade, onde chineses, portugueses e muitos outros mantinham encontros e desencontros diários, como sempre acontece em todas as comunidades humanas. E, talvez por maioria de razão, numa terra tão exígua, numa “ilha” se atentarmos nas palavras daquela autoridade chinesa, para quem Macau em circuito tudo he água, num tempo que contava já mais de 200 Annos, desde o estabelecimento dos portugueses.

A chegada de um novo Edital, assinado por um mandarim da hierarquia imperial do “Filho do Céu”, gerava sempre momentos de tensão, temendo-se novas reclamações, impostos ou ingerências. Preocupações regulares que vinham do passado e que o presente sempre relembrava a quem tinha por missão gerir os destinos de Macau, confrontando-se com os muitos editais que ia recebendo.

Assim surgiu uma nova exigência com castigo anunciado a quem ousasse desobedecer, pois seriam castigados em dobro. Era pesada, e assim continuava, a mão da justiça imperial.

A partir de março de 1788, mandava o mandarim da Casa Branca que todos os Chinas, e Christãos se conservem em paz. Porque os mandarins têm praticado pelo mesmo modo uma igualdade, tanto para Chinas, como Christãos, o mandarim Wang Chaojun acrescentava ainda àquela sua exigência que todos não devem guardar odio huns com os outros, porque por odio he que succede muitas historias.

Escrito pelo mandarim que, aos olhos do Celestial Imperador, mais diretamente era responsável pela vida em Macau, este edital talvez tenha sido bem recebido pelas gentes daquela “ilha”. A Chinas e Christãos era difícil contestarem tão celestiais desígnios, mas não seria fácil executá-los nas ruas da cidade.

Foi, porventura, a ordem mais difícil de cumprir... ou, para surpresa de muitos, talvez a única que foi verdadeiramente respeitada por mais dois séculos, até ao longínquo ano de 1999.

In Fundação Jorge Álvares, Newsletter, março. 2025

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... auxílio que pede para destruir os Ladrões...

Imagem gerada pela IA (Gemini).

Durante muito tempo circulou a ideia de que o estabelecimento dos portugueses em Macau se deveu a uma dádiva do Império da China em troca do auxílio prestado no combate à pirataria, que circulava pelos mares do sul. Uma lenda que se fez história ou uma história que se fez lenda?

Do século XVI ao século XX, foram frequentes os contactos entre as autoridades chinesas e portuguesas para juntar esforços e alimpar o Mar dos Ladrões. As atas do Leal Senado de Macau dizem-nos que, em fevereiro de 1792, chegou mais um pedido dos mandarins de Cantão. O Procurador, com a chapa mandarínica na sua posse, junto dos homens-bons da Cidade, apresentou o pedido, apelou à mobilização e ofereceu os seus bons auxílios monetários. Eram solicitadas duas embarcações para ajudar o Império e este não era o momento para escusas ou hesitações.

Em troca do auxílio estava a promessa de restituição de antigos privilégios que, entretanto, tinham sido esquecidos. Viviam-se tempos difíceis em Macau. Já se havia esgotado a prata que antes brotava do Japão. À medida que a riqueza minguava, definhava também a sua autonomia. E, este novo pedido era uma oportunidade para a restituição, e concessão de Privilégios que nos eram concedidos pelos Imperadores passados.

Mais uma vez, tal como já havia acontecido antes e viria a acontecer depois, Macau preparava-se para sair em socorro do vasto Império. A história continuava a alimentar a lenda. Com a “ajuda” de piratas e ladrões, Macau tentava recuperar velhos privilégios e, quiçá, novas benesses, que garantissem a continuidade da presença portuguesa naquela breve terra. Por isso, os homens-bons da Cidade, tal como expressou o seu Governador, reafirmaram que para o serviço do Imperador sempre nos achará prontos.

Alianças entre impérios, celebradas pelas graças das vis ações dos piratas que teimaram, ao longo dos séculos, em vaguear e saquear os mares do sul da China.

In Fundação Jorge Álvares, Newsletter, fevereiro. 2025

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… a fim de evitar futuras complicações...

Imagem gerada pela IA (Gemini).

Em Macau, Patane é um lugar quase mítico, que se confunde com a origem da fixação dos portugueses no litoral do sul da China. 

Antes de se conquistarem terras ao rio, Patane conhecia o quotidiano de gente pobre, ligada à vida do Porto Interior e a diferentes ofícios. Entre eles, contavam-se os pedreiros, sempre atarefados em dar forma aos materiais que permitiam erguer novas construções. A Rua da Pedra, no prolongamento da Rua de Patane, testemunhou este ofício, que o tempo foi dissipando.  

Os aterros, que ampliaram o lugar de Patane, ofereceram à Rua da Pedra novos proprietários e outras fontes de riqueza. Chiang-t’in-uai e Chiang-t’in-ion compraram os prédios 34 a 38 e, na rua que antes só conhecia o moldar da pedra, instalou-se a tinturaria Chiang-lai-vá. Nem no cruzamento com a Rua da Harmonia se acreditava que, na Rua da Pedra, estavam garantidas a paz e a serenidade.   

As riquezas não evitam a morte e Chiang-t’in-uai, ao falecer, dispersou os seus bens por seis herdeiros, entre filhos e netos. Partilhas feitas por igual, para diferentes desejos e necessidades, Chiang-i-ch’io e Chiang-kam-veng optaram por vender os seus quinhões a Chiang pan.  

Palavra dada, escritura marcada – em escritório de advogado com nome português, Assunção –, mas contas por fazer. Na data marcada o dinheiro não surgiu, a transação foi cancelada e a história deste negócio conheceu o seu fim. Mas, para prevenir outras histórias e a fim de evitar futuras complicações com origem numa compra apenas prometida, aqueles dois potenciais vendedores fizeram saber, no Boletim Oficial, para conhecimento de todos, que a venda prevista não se tinha realizado.  

Estranhamente, ou talvez não, o Boletim Oficial de Macau de 3 de janeiro de 1925 ocupou as suas páginas a anunciar algo que não aconteceu, para garantir que nada viria a acontecer, não fosse a cobiça tecê-las!  

In Fundação Jorge Álvares, Newsletter, janeiro. 2025

https://jorgealvares.com/loapsoob/2025/01/FJA-Newsletter_compressed.pdf